(Isso aconteceu já faz uns bons quatro dias, mas merecia um relato detalhado…)
Logo cedo, alguma coisa parecia estar errada: o carregador do meu notebook, que estava ligado na tomada, não piscava mais a luzinha como de costume. Fui até o interruptor e confirmei minhas suspeitas: estávamos sem luz no chalé. Bom, e banho, rola? Tentei abrir o chuveiro e nada. Não deu dois minutos e a senhoria bateu à porta, com um galão de água na mão. "Here. For shower. No light, no water". Ops, tudo bem, quem sabe não temos um dia lindo para compensar esse começo sinistro? Afasto as cortinas e eis que tenho a visão do inferno (se ele tivesse congelado): a nevasca do século estava rolando lá fora, explicando a falta de energia e água em todo o vilarejo.
Juro que não consigo entender. Há uma semana, passei pela mesma situação (bem menos crítica, é verdade) em Vladivostok e me garantiram que havia sido uma exceção. "It's almost May already!", disseram. Bom, fato é que estamos cada vez mais perto de maio e a paisagem novamente é de alto inverno. Minha primeira preocupação foi checar com d. Tatjana se minha condução agendada para voltar a Irkutsk estava confirmada - não era o que parecia, olhando pela janela. Dito e feito: dali a uns cinco minutos ela me procurou e vaticinou: "Car not get here. Don't worry, bus go eleven". E que horas são? "Ten thirty. Better hurry!" Voei e fechei minhas malas de qualquer jeito, não sem antes perguntar se ela achava mesmo que o busão iria rolar normalmente naquela nevasca. Ela deu um sorriso e respondeu, impávida: "Of course! This is Siberia…"
OK, é mesmo, se eles sobrevivem normalmente naquele inverno brabo, por quê não hoje? Mesmo assim, vendo a minha cara de pânico - estávamos a uns dois quilômetros do ponto de ônibus, e nevava e ventava de modo realmente assustador -, d. Tatjana, muito gentil, destacou uma brava colega para me acompanhar até lá. Vencida a distância - não sem alguns escorregões da minha parte e rajadas de gelo no rosto -, encontramos alguns outros infelizes que lá já estavam à espera congelante do ônibus que finalmente nos conduziria à civilização. A moça, cujo nome infelizmente não sei até agora (mas tenho um palpite que seja Natasha - porque toda russa se chama Natasha...), prontificou-se a esperar comigo até que o bumba chegasse. Eu disse que estava super agradecido e que ela podia voltar, se quisesse - desnecessariamente, pois além de não entender inglês, vi que ela não arredaria pé mesmo.
Após quarenta minutos de expectativa agonizante, eu já perdendo a fé, eis que passa um cidadão, aparentemente bem-informado, e lança algo em russo que claramente significava algo como "galera, desencana que o busão tá preso no caminho e não vai chegar aqui nem a pau!" Não deu outra: o povo dispersou e sobramos eu, minha corajosa acompanhante e um casal de mochileiros - que também tinham horário para pegar o trem e estavam tão perdidos quanto eu. P*rra, d. Tatjana, aqui não é a Sibéria?? Sem pestanejar, disparei para os gringos: "Let's share a taxi?" - sem ter a mais puta idéia se HAVIA algum por perto. Felizmente "táxi" aqui é "tacsi", de modo que a russa entendeu e se apressou em perguntar para dois caras que estavam do outro lado da rua - oportunisticamente, claro - quanto cobrariam para nos levar a Irkutsk. "Three thousand rubles", atiraram. Desesperados, gritamos quase que ao mesmo tempo "deal!!" e nos refugiamos imediatamente dentro do carro, quase sem palavras para agradecer à "Natasha", e praticamente criogenizados.
Mas a brincadeira estava só começando. Sabe aquela sensação que você pode estar se metendo numa fria (sem trocadilhos, por favor), mas voltar atrás pode ser ainda pior? A única vez que eu tinha sentido isso foi na trilha voltando de Bonete (Ilhabela), sob o maior toró e correndo o risco de ficar ilhado no meio da mata. Pois bem, voltei a sentir, porque, meu amigo, dali em diante a nevasca só fez piorar. Não se via nenhum outro carro além do nosso na estrada. Aliás, corrigindo: não se via estrada nenhuma. Era só um monte de neve pra tudo que é lado, e batendo com toda força no pára-brisas. Eu não tenho a menor idéia de como aqueles caras conseguiam se localizar enxergando meio palmo à frente - e foi ficando óbvio que o ônibus não tinha mesmo a menor chance de chegar em Listvyanka.
De um jeito ou de outro, íamos avançando em meio à tempestade apocalíptica. Ao longo do caminho víamos, em meio ao nevoeiro, carros enguiçados, atolados ou sendo empurrados (já me via fazendo o mesmo em breve). O intrépido motorista, porém, passava ao largo de tudo isso, cabeça erguida, e metia o pé no acelerador da caranga, que sambava pra lá e pra cá, deslizando sobre a grossa camada de neve que se havia formado sobre o asfalto. Mais adiante, ainda antes da metade do percurso, uma fila indiana de veículos parados com o pisca-alerta aceso (alguns deles, inclusive, dando meia-volta) indicava mais problemas: um deslizamento de neve obstruía parcialmente a pista. Qual o quê! Nosso Dick Vigarista ignorou solenemente mais uma vez e ultrapassou todo mundo, se enfronhando nos cantos menos prováveis da estrada e, sob o olhar atônito (e alguns xingamentos) dos outros motoristas, cruzou mais um trecho aparentemente intransponível!
Quando tudo parecia superado, eis que, mais alguns quilômetros à frente, três árvores tombadas bloqueavam o caminho. Bom, agora sim, f*deu, né? Meninos, eu vi com esses olhos que a terra há de comer algum dia: nosso Incrível Hulk (o cara era grande mesmo) saiu do carro tranqüilamente e, sem a menor cerimônia, tratou de arrastar os troncos pra fora da estrada! Comecei a achar sinceramente que nada mais nos deteria, nem se rolasse uma mega-avalanche! De fato, mais meia horinha e estávamos entregues, sãos e salvos, na estação de trem de Irkutsk. E a tempestade seguia, firme e forte. Eu e meus novos colegas - irlandeses indo para a Mongólia, descobri no caminho - nos entreolhamos, mal acreditando no que havia acontecido.
Dentro da estação, tendo finalmente trocado meu e-ticket pelo bilhete definitivo, comecei a respirar aliviado - principalmente por saber que, apesar de tudo, o trem não iria atrasar. Foi quando, dèja-vu, escutei uma voz no meio da multidão: "Roberto!!!" Olhei pro lado e era a Olga, a moça com inglês perfeito que me levara a Listvyanka - e que deveria ter feito o percurso de volta comigo, não tivesse ficado ilhada em Irkutsk. Ela me olhou, incrédula, e soltou: "I can't believe you managed to get here!"
Dei um sorriso e respondi, impávido: "Of course! This is Siberia…"
Incrivel, saido de Dostoyevsky...
ResponderExcluirbeijocas com saudades!
Tou começando a apreciar os 13 graus aqui em Sampa :-)
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