Meu trem saía tarde de Vladik (já estou íntimo!) tarde - dez e vinte da noite, pra ser mais preciso. Mesmo assim, resolvi não ocupar meu dia com muitas atividades. Estava tão focado na viagem - e, convenhamos, não havia nada mais tão incrível para conhecer na cidade -, que me dediquei a dormir bem, lavar minhas roupas, arrumar a mala com calma e estudar o trajeto do trem - com uma ajuda valiosa do Andrej, que imprimiu uma versão atualizada do site da RZD, a empresa ferroviária russa.
Lá pelas cinco, me despedi do pessoal do hostel - na verdade, do Yuri, o único que ali restava (afinal, era domingo de Páscoa) e fui para o centro. Precisava ainda sacar uma grana (aqui é difícil aceitarem cartão) e comprar algumas provisões no supermercado, pois não tinha certeza de como seria o esquema da comida no trem. Lá, passei batido da sugestão do Andrej, um enlatado de carne chamado "tuschonka" (que me pareceu uma bela gororoba ao se deixar visualizar através da compota de vidro), e comprei coisas mais básicas, como água (inadvertidamente com gás, reincidindo no meu erro mais comum em viagens), suco, pão, torradas, geléia, maçã e um Polenguinho russo - além de um pequeno estoque de papel higiênico próprio (vai que precisa!…). Também aproveitei pra providenciar alguma leitura, e felizmente encontrei uma livraria aberta. Tá certo que a oferta de títulos em inglês não era muito vasta, mas consegui pelo menos levar dois Conan Doyle e um G. K. Chesterton - talvez as histórias de mistério combinem com o astral da viagem :) -, somando-se ao Murakami e ao livro sobre carreira (sorry, não pude evitar) que comprei em Nagoya - muito embora tudo que eu queria mesmo era um Dostoievski!
Cheguei na estação com umas duas horas de antecedência, suficientes para admirar a arquitetura e a decoração do prédio - de uma imponência decadente, mas bela - e tentar adivinhar quais dos que estavam no saguão iriam pegar o Trans-Siberiano comigo. Seria aquele bafo-de-onça caindo pelas tabelas? Ou a senhora com o filhinho? Ou aquele grupo de amigas? Ou aquele trio de tajiquistaneses mal-encarados? Provavelmente todos, porque aquela hora da noite, meu amigo, só tinha mais um trem para sair.
Chegada a hora, adentro o comboio chamado "Rossiya 001", pintado com as mesmas cores e o mesmo padrão da bandeira russa - três faixas horizontais em branco, azul e vermelho. Para minimizar o choque, dessa vez esbanjei e resolvi pegar o melhor tipo de vagão, um equivalente de primeira classe, com apenas duas camas em cada compartimento. Pra completar, dei sorte e não fui "agraciado" com nenhum colega, de modo que tenho ganhei um espaço só pra mim!! E que, confesso, superou meus melhores sonhos - tem TV e rádio (que, vá lá, funcionam de vez em quando), tomada, uma mesinha com bolachas e chá, cabides, espelho e espaço razoável para guardar minhas duas mochilas. Claro que, ao fazer essa opção, abro mão da sociabilidade e das histórias mais divertidas que certamente rolariam em outros vagões; mas, ao mesmo tempo, diminuo meu risco de pegar uns "maletas sem alça" e de ter minhas coisas afanadas.
Descobri também que cada vagão tem pelo menos uma "provodnitsa" - uma espécie de "bedel" da turma, invariavelmente uma senhora gordinha -, que é quem efetivamente manda no pedaço. Tente conquistar a simpatia da tia e terá uma verdadeira mãezona - caso contrário, uma generala (existe esse termo?). Acho que elas gostaram de mim; uma delas inclusive protagonizou uma mímica digna de Marcel Marceau para me perguntar se eu preferia comer no restaurante ou ser servido. É claro que fui ao vagão-restaurante, afinal é um dos locais do trem onde alguma coisa acontece. O simpático ambiente tem uma decoração um tanto kitsch (nada que me surpreendesse): mesas em madeira escura, alguns espelhos aqui e acolá, cortinas de cor vinho com detalhes em dourado e algumas luzinhas de Natal acima do bar. A comida é bastante boa - minha primeira experiência foi um salmão muito bem-feito e uma sopa de batatas que estava de comer de joelhos.
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Aqui todo mundo me olha como se eu fosse um extraterrestre. Quando falo que sou do Brasil (em uma das três frases curtas em russo que decorei), invariavelmente esboçam um sorriso e, ao mesmo tempo, fazem uma cara de estupefação. E desandam a falar um monte de coisa que eu não entendo. Como nenhuma das palavras é "samba", "carnaval" ou "Ronaldo", devem estar perguntando algo como "que diabos você esta fazendo neste fim-de-mundo?". Certeza.
Embora o compartimento tenha televisão, pra mim a grande diversão da viagem é olhar a "outra TV" que fica do lado oposto: a janela do trem. Durante o dia, é impossível ficar alheio à seqüência de imagens que passam lentamente (a velocidade do trem está longe, muito longe, da de um shinkansen). A vegetação predominante, pelo menos nos primeiros quilômetros, é composta por arbustos rasteiros de cor amarelada, solo de uma cor marrom-escuro como nunca vi, e árvores secas e branquinhas como se tivessem sido pintadas à mão, e está assentada sobre um relevo bastante plano. Paisagem esta que é quebrada somente pela presença de cidades aparentemente fantasma, com casas muito, mas muito detonadas e estações de trem absolutamente ermas, que surgem do meio do nada. Pra não dizer que não há traços de civilização, o celular pega (bem) em alguns lugares, e vez ou outra cruzamos com comboios de carga, transportando, em sua maioria, minério e óleo.
O trem pára na maioria das estações, mas geralmente por apenas dois ou três minutos. Porém, nas cidades maiores, como Khabarovsk (que, pude constatar, é bem mais bonitinha que Vladivostok), a parada pode chegar a meia hora, o suficiente para comprar alguma coisinha e se dar ao luxo de conhecer um ou dois quarteirões da cidade - com olho fixo no relógio, afinal ninguém quer ser abandonado em algum vilarejo do meio do "Russian Far East" (que não é a Sibéria - é mais longe!). Falando em relógio, os horários dos trens, em qualquer lugar da Rússia, seguem todos o fuso de Moscou. O que de início parece esquisito logo se mostra bem eficiente, afinal a Rússia tem nove fusos horários - e este trem passa por quase todos -, o que tornaria ainda mais confuso (desculpem o trocadilho) tentar entender os horários locais. Por isso agora tenho três (!) relógios: o de pulso, que marca o horário local; o do celular, que marca a hora de Moscou; e o do computador, que segue com o saudoso horário de Brasilia! :)
No terceiro dia, o rádio desandou a funcionar. De início, desanimei quando vi que os três primeiros canais correspondiam basicamente ao áudio dos programas da TV. O quarto canal (e último), porém, me reservava uma bela duma surpresa: heavy metal cantado em russo!! Uau! A banda é um clone sem-vergonha do Iron Maiden, mas beleza, dá pra escutar! Que demais. Adorei a primeira música, de modo que esperei ansiosamente pela segunda. "Hmmm, conheço isso de algum lugar", foi minha reação imediata. Ah, sim - era a musica anterior, repetida… Bom, pra encurtar a história, passou-se algum tempo e notei que o canal fica tocando, simplesmente, A MESMA música o dia inteiro, todos os dias! Rarará! Deve ser a única musica da única banda de metal da Rússia!
À medida em que rumávamos para oeste, a paisagem inóspita passava a conviver, gradativamente, com colinas, rios (semi-congelados) e casas mais ajeitadinhas, e o verde foi ganhando espaço na folhagem das árvores. Essa mudança foi acontecendo ao mesmo tempo em que as nuvens iam embora - o que embelezou o cenário, melhorou ainda mais o astral da viagem, e deu um empurrãozinho extra aos meus instintos fotográficos -, culminando com um pôr-do-sol que eu esperava ver em todo lugar, menos na Sibéria…
No quarto e último dia de trem, já esperava que o trem, em algum momento, passasse a margear o Lago Baikal - um dos momentos mais aguardados da viagem e destino da minha única parada. Porém, mesmo assim consegui me surpreender com a vista que tive quando os trilhos alcançaram a beira do lago: ele surgiu ainda congelado, branquíssimo, mais parecia um salar. Muito lindo! Em outros trechos ele já está descongelando, formando em sua superfície diversas rachaduras e elevações - cenário não menos incrível.
Finalmente, às seis da tarde desço em Irkutsk, de onde pego uma condução para o povoado de Listvyanka para curtir dois diazinhos fora do trem - e, só então, encarar o comboio novamente em direção a Moscou. Last but not least - queria aproveitar e agradecer demais pela torcida e pelas boas vibes de todo mundo. Pelo visto deram mais do que certo, já que a primeira metade dessa viagem foi não menos que perfeita! :)